PATA SECA - O ESCRAVO REPRODUTOR
Eu era ainda menino
E sempre ouvia falar No sítio dos meus avós Que eles iam separar As vacas que apartavam E com um touro deixavam Pois precisavam cruzar. Com isso iria aumentar Na fazenda a criação Depois eu fiquei sabendo Que aquilo era tradição; Desde o descobrimento Existe esse movimento Chamado procriação. No tempo da escravidão Essa prática existia Entre os negros escravos Que o branco possuía Na História do Brasil Existe essa mancha vil Eivada de hipocrisia. Um negro escravo valia Por dois ou três animais Se fosse forte e sadio Valia até muito mais Que era bom pra trabalhar Pra produzir, pra gerar E pra serviços gerais. As negras valiam mais Se fossem novas, faceiras Pra trabalhar com as patroas Servindo de camareiras, De damas de companhia E tinham até mais valia Se fossem boas parideiras. São Carlos, uma ribeira Do interior paulista Existia um fazendeiro Com terra a perder de vista, Francisco Cunha Bueno Com café, muito terreno E também pecuarista. Na loucura extrativista Ele fazia valer O título de poderoso Pois tinha em seu poder Uma centena de escravos, Mas o seu regime bravo Os fazia obedecer. Escravo até pra vender Porque era criador Tinha macho bem criado Para ser reprodutor Isso é coisa do passado E eu deixo aqui registrado Um negro que ele comprou. Escravo reprodutor Assim ele era chamado Não trabalhava na roça Era sempre bem tratado Corpo ideal pra gerar Filhos machos pra aumentar Do fazendeiro o legado. Para o trabalho forçado Os filhos se destinava Quando nascia uma menina O fazendeiro botava Culpa no reprodutor Que na função fracassou; Se reclamasse apanhava, Duzentos filhos contava Nos registros existentes Santa Eudóxia, um povoado Criado nessas vertentes E cuja população Trinta por cento ainda são Desse negro descendentes. Em entrevista recente A Globo localizou Uma neta desse negro E a ela entrevistou Ficando então registrado De Pata Seca o legado Desde quando começou. O fazendeiro o comprou Sem um nome registrado De Roque José Florêncio Foi o escravo nomeado Pelas mãos finas, compridas, Pontiagudas, definidas, Pata Seca apelidado. E foi com esse legado Que o negro permaneceu No século dezenove Na metade ele nasceu Declarado escravo afoito, No ano cinquenta e oito Do século vinte morreu. Essa entrevista, quem deu Foi Maria Madalena Florêncio Florentino Sua identidade plena Miscigenada, mulata, Muito educada, pacata E de aparência serena. Disse Maria Madalena Que o escravo foi comprado Na Vila de Sorocaba E pra São Carlos levado O fazendeiro o comprou Para ser reprodutor, Por isso era bem tratado. Mas não ficava parado, Apenas não trabalhava Na lavoura com os negros Nem na senzala morava Tinha certa regalia, Num quartinho residia Onde com as negras cruzava. O patrão que indicava As negras pra procriar De outras fazendas vinham Escravas para cruzar, O abastado fazendeiro Ganhava muito dinheiro Com essa prática vulgar. Para o tempo completar Ele era o mensageiro Escravo de confiança Do abastado fazendeiro Trazia com eficiência Toda a correspondência Em um cavalo ligeiro. Na função de mensageiro Teria que percorrer Trinta e cinco quilômetros A São Carlos pra fazer Os mandados do patrão E às vezes, na obrigação, Ficava até sem comer. Até o anoitecer Era serviço de mais Pois chegando da viagem Ia cuidar dos animais De serviço da fazenda E até os que estava à venda Em escalas comerciais. O negro tinha sinais Por quais era procurado Pra produzir filho macho, Sempre de olhar aguçado Dois e dezoito de altura Canela fina e cintura Por isso era cobiçado. Vinham de outros Estados As negras para cruzar O fazendeiro ganhava Sem nada a ele pagar Mesmo na fazenda dele Quem não quisesse ir com ele Patrão mandava estuprar. Quando estava a viajar A serviço do patrão Ele conheceu Palimira Por quem teve adoração Uma moça da cidade Logo nasceu de verdade Uma perfeita união. Do pensamento a ação A pediu em casamento Com a moça na garupa Sairam cortando vento Pra sua nova vivenda E o dono da fazenda Os recebeu a contento. Com grande contentamento Levou os dois pra casar Deu vinte alqueires de terra Para eles trabalhar Ele com disposição Fez uma casa no seu chão E foi com ela morar. Sem recursos pra cercar Boa parte foi tomada Por vizinhos ambiciosos Mas ele não agiu nada. Brocou, limpou, cativou Até horta ele plantou Junto com a sua amada. Não deixava faltar nada No rancho onde eles viviam Plantou mandioca, abobrinha, A tudo eles resistiam Criou peru e galinha Se mantinham do que tinha E o resto eles vendiam. Logo os filhotes nasciam Com eles sobrevivendo Nove crianças tiveram Sadias foram crescendo Ele fazia de fato Peças de artesanato E tudo iam vendendo. As coisas acontecendo, Ventre livre, abolição, Pata Seca com a família Ficaram na região Esquecendo a filharada Ficou a família amada, Passando a ser cidadão. Depois da abolição A sua vida mudou Deixou de ser Pata Seca O macho reprodutor Usando agora o bom senso De Roque José Florêncio Um homem trabalhador. Duzentos filhos gerou Embora contra a vontade Ficou depois o legado Em toda comunidade Filhos e netos passavam Todos o cumprimentavam Com respeito e sem maldade. Seja boato ou verdade Conta-se que ele viveu Quase 130 anos Muita gente o conheceu Fosse um branco era endeusado Mas negro vira passado No momento que morreu. Santarém-PA,14 de outubro de 2022 SÉRIE CAÇADORES - VOLUME 26
Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 19/11/2022
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