José Medeiros de Lacerda

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Textos

CONSTÂNCIA D'ANGOLA - VÍTIMA DE TIRANIA
Província do Espírito Santo
No sertão de São Mateus
Fins do século dezenove
Este fato aconteceu
Com requinte de maldade;
Negro era ´propriedade,
Riqueza dos donos seus.

A região de São Mateus
Tinha desenvolvimento
Onde o Rio Cricaré
Que quer dizer sonolento
Por suas águas amenas
Profundas porém serenas
Desciam em ritmo lento.

Gritos de dor e lamento
Que pela serra ecoava
De uma negra no tronco
O rio presenciava
Sofrendo ela padecia
Mais o chicote batia
Mais e mais ela gritava.

A negra ameaçava
Sua senhora matar
Por isso estava amarrada
No tronco para apanhar;
Quanto mais batiam nela
Mais crescia dentro dela
Vontade de se vingar.

O desejo de matar
Dessa negra acorrentada
Vem de uma perversidade
Que a ela foi aplicada
Fria e covardemente
E a deixou constantemente
No tronco chicoteada.

Se a história é mal contada
Não ousem me criticar
Pois fui juntando os pedaços
De tanto e tanto estudar
Sei que a trama é verdadeira;
E essa tragédia inteira
Eu vou em versos contar.

Esse fato fez gerar
Muito ódio e confusão
É uma saga emoldurada
Da tal colonização
Onde só rico podia,
Quem era pobre vivia
Submisso a opressão.

No tempo que a região
Do Vale do Cricaré
Sangue de negro, de índio
E nordestino de fé
Jorravam feito cascatas
Na derrubada das matas
Pras lavouras de café.

Nas margens do Cricaré
Índio era pegado a unha
E dividia as senzalas
Com os negros, se supunha,
Surge uma crioula parda
Propriedade privada
Do Coronel Gomes Cunha.

De Angola a sua alcunha
Talvez pela procedência
Constância era o seu nome
E tinha boa aparência,
Solteira, inteligente,
Sempre muito obediente,
Pra sua sobrevivência.

Devido a sua serviência
Aquela bela mulher
Foi levada da fazenda
Às margens do Cricaré
Com negros de sua estima
Pra o lugar Serra de Cima
No cultivo do café.

Na região do Cricaré
Tinha extensos cafezais
Mas Constância trabalhava
Entre os canaviais
Pois os seus proprietários
Eram latifundiários,
Poderosos sem rivais.

E daqueles cafezais
Pra onde ela foi levada
Demorou pouco no eito
E foi logo retirada
Para servir de mucama,
Passaria a ser a ama,
De Dona Rita a criada.

Por ser muito dedicada
Gozava da boa estima
Dos brancos da Casa Grande
De lá da Serra de Cima,
Mas em todo bom terreno
Por mais tranquilo e ameno
Sempre há mudança de clima.

Por gozar de boa estima
Na senzala não dormia
Tinha cama com lençol,
Mas com toda regalia
Sabia que era escrava,
De nada participava
E seu povo não esquecia.

De vez em quando ela ia
Com seus amigos ficar
Compartilhar rituais,
De cultos participar
Pois a tudo ela seguia,
E a senzala servia
Até para namorar.

E foi de tanto ir pra lá
Que um filho ela arranjou,
Por morar na Casa Grande
A senhora não gostou,
Aquilo era impedimento;
Achava um atrevimento
O filho que ela arranjou.

Mas Constância continuou
Na Casa Grande servindo,
Num cantinho do seu quarto
Deixava o filho dormindo
Vez por outra amamentava,
A senhora reclamava
Mas ela ia resistindo.

Constância estava sentindo
Que não continuaria
Servindo na Casa Grande,
E tudo que ela queria
Era estar com seu povo,
Voltar pro eito de novo
Que eles a ajudaria.

Sempre que ela pedia
A Casa Grande negava
Até o leite do filho
A senhora lhe negava
Ainda a proibia
De ver o filho de dia
E amamentar não deixava.

Com isso o filho chorava
Da fome que padecia,
Um bebê recém nascido
De madrugada comia
Depois ficava trancado
Chorando desesperado,
Só à noite mamaria.

Constância às vezes fugia
Mas era capturada,
Passava horas e horas
No tronco chicoteada
Suas chagas suportando,
Ouvindo o filho chorando
E sem poder fazer nada.

Quando era libertada
Voltava pra servidão
Sem poder reclamar nada,
Sofrendo grande opressão;
Com serviço acumulado
O trabalho era dobrado,
Não tinha contestação.

Aquela situação
Cada vez mais piorava
O filho passando fome
A cada dia definhava
Sofrendo grande agonia,
Pois quanto menos comia
Tanto mais ele chorava.

A senhora não deixava
Constância voltar pro eito
Nem suportava o negrinho
Chorando daquele jeito,
Pensou numa solução;
Praquela situação
Já tinha um plano perfeito.

Pega o negrinho de jeito,
Chorando desesperado
O jogou numa fornalha
Que morreu carbonizado
Resolvendo seu problema,
Mas criando outro dilema
Para ser solucionado.

Com um grito alucinado
A negra, descontrolada,
Agarrou sua senhora
Pra matá-la asfixiada
Outros brancos acudiram
E quase não conseguiram
Que ela fosse controlada.

Constância foi amarrada
No tronco e ali ficando
Noite e dia chicoteada,
Sempre vingança jurando,
Quanto mais ela apanhava
Mais forte ainda ficava,
Sua ira mais aumentando.

Até certa noite, quando
Um líder da região,
Viriato Cancão de Fogo
A libertou da prisão
E a levou para lutar
Com a intenção de se vingar
Dos brancos sem coração.

Aumentou mais a tensão
Com a fuga de Constância
Os negros estavam bravos
Pela morte da criança
Ela agora unida a eles
Com certeza alguns deles
Iriam fazer lambança.

Com o filho na lembrança
Constância, agora guerreira,
Oculta nos arredores
Acharia uma maneira
Da vela Rita matar,
Mas queria eliminar
Aquela família inteira.

Os brancos, sobremaneira,
Andavam mesmo assustados,
Os negros da região
Estavam inconformados
Desde a morte da criança
E a fuga de Constância
Com alguns negros aliados.

Estavam encurralados
Temendo carnificina,
Pra livrarem Dona Rita
Acusaram Dona Lina
E até Theodózia Vieira
Citaram como parceira
Daquela saga assassina.

Até que enfim se destina
Pra se livrar de Constância
Deixarem a Serra de Cima,
Fazenda Boa Esperança
Na Serra dos Aymorés
Com alguns escravos fiéis
Pra se livrar da matança.

Enquanto isso Constância
Com Cancão de Fogo unida
Guerreava contra o governo,
Livrando, salvando vida,
Incendiando senzala
Lutando com faca ou bala
Cada vez mais perseguida.

Até que numa investida
Ela foi aprisionada
Pelos capitães do mato,
Em praça pública surrada
E em certa ocasião
Durante uma procissão
Foi por Cancão libertada.

Depois ficou entocada
Procurando uma maneira
De entrar na Casa Grande
Porém a família inteira
Saiu da Boa Esperança;
No desejo de vingança
Encontrou Zé Oliveira.

Cabra sem eira nem beira
Com quem tinha desacato
Era feitor na fazenda
Quando houve o assassinato,
Tinha sido promovido.
Por Zé Diabo conhecido
Virou capitão do mato.

Chegaram às vias de fato
Em luta descomedida
Às margens do Piaúna
Constância caiu vencida,
Morreu lutando, de fato,
Mas o capitão do mato
Zé Diabo, perdeu a vida.

Foi encontrada caída
Por seu feito heróico e bravo
Fizeram o sepultamento
Na Cachoeira do Cravo
Numa cova lá no cantinho
Com as cinzas do seu filhinho
No cemitério de escravos.

Fatos como esse, bravos,
A nossa história não conta,
Da tirania dos brancos;
Só falhas negras aponta;
Isso é coisa repetida.
Com gente desprotegida
O poderoso ainda apronta.
Tianguá-CE, 25 de Fevereiro de 2022
SÉRIE ESCRAVIDÃO - VOLUME 21
Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 19/11/2022
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