José Medeiros de Lacerda

Leia poesia - A poesia é o remédio da alma

Textos

JOÃO GRANDE - UM CANGACEIRO NA CAPITAL
Estive no Piancó
Pra rever algum parente
Minha família Lacerda
Povo muito inteligente
Pensei ter deficiência
Porém dessa descendência
Eu nunca vi tanta gente.

De Zuza um descendente
Na forma mais natural
Falou-me de um seu parente
Tio em terceiro grau
João Lacerda, um cangaceiro,
Que foi pro Rio de Janeiro
Conhecer a capital.

Período Colonial
Esse parente vivia
Deixando a caatinga
Começou a travessia
Andou dois meses inteiro
Até encontrar Conselheiro
No Estado da Bahia.

Não era o que ele queria
Porém ao grupo se uniu
Depois de recuperado
Uma certa manhã sumiu
Dando uma de fugitivo
Pra alcançar o objetivo
Que era a cidade do Rio.

Até que enfim conseguiu
Na Guanabara chegou
Pra sobreviver comeu
O pão que o diabo amassou
Mas conseguiu seu intento.
Após muito sofrimento
Para o Piancó voltou.

Para os amigos contou
Tudo que por lá viveu
Lugares por onde andou
Pessoas que  conheceu
Com quem se relacionou
Até com o Imperador
João Lacerda conviveu.

João Grande era o nome seu
Nos tempos de cangaceiro
Também com esse apelido
Lá no Rio de Janeiro
Ele ficou conhecido,
Um sujeito divertido
Alegre e bem prazenteiro.

Com seu falar beradeiro
Sem uma palavra acertar
Alegrava a toda gente
Quando estava a conversar
Num linguajar irrisório
E é o seu palavrório
Que eu vou em versos narrar:

"Minha gente, eu vou falá
Como sofre um brocoió
Que vai pru Rio De Janeiro
Deixando seu cafundó
Lugá que eu disconjuro
Pru Santo Onofre eu te juro
Que a coisa é muito pió.

Amigo Zé Piancó,
Eu garanto a vosmicê,
Mané Joaquim, minha boca
Nem tudo pode dizer
Que tem naqueles abróio
E eu vi cum esses dois óio
Que a terra há de comê.

Na hora que fui descê
Do carro, já fui robado
No dinheiro que levava
Com tanto suó ganhado
Em Antonho Conseiêro
Cum a inxada o dia inteiro
Na prantação do roçado.

Os ladrão puresses lado
Vem das canáia ruim
Mas óia que lá na Côrte
A coisa num é assim,
Ladrão lá é respeitado,
E foi um civilizado
Que tomou tudo de mim.

Vocês vão se rir enfim
Mas o fato é verdadeiro
Cumade, nem que você
Assuntasse o ano inteiro
Na esperança de sabê,
Num haverá de dizê
Quem me roubou o dinheiro.

Roguei praga, fiz berreiro
Mas o cabra me impuiou
Cum tanta inducação
E até me abençuou
Mas hai de pagá bem caro,
Apois bem, foi um vigáro
Que meu dinheiro robou.

Num leve a séro, sinhô,
A tá civilização,
Um home que lá na igreja
Cunfessa, dá comunhão,
Faz casamento, batiza,
Róba, num leva uma pisa
Nem nunca vai pra prisão!

Mané Bijú, meu irmão,
Num é pru querê falá,
Mas no Rio tem avenida
De terra e de beira má
De noite num se vê treva,
Tem casa que a gente leva
Um dia inteiro a atrepá.

Triato Municipá,
Paláço, Praça da Sé
Mas porém tem muito cabra
De otromóve ou de pé
De gravata e colarinho
Que passa o dia inteirinho
Com uma chica de café.

Vocês num sabe o qui é
Um cabra sarambelão
Com uma camisa arrufada
Um chapéu sempre na mão?
Pindure pelo pescoço
Que num cai daqueles bolso
De nique nenhum tostão!

Faz uma cumprimentação
Quando vê uma muié
Um sarará que se dana
Querendo pegá no pé
Sai atrás, todo contente,
Como mosca quando sente
O cheiro fresco do mé.

Mas porém, sabe comé,
É que nem fogo de vela,
Mazombeira, isfabriçada,
Nem seu que gente é aquela.
Parece que nem existe
pois tem os óio tão triste
E a cara toda amarela.

A vida aqui é mais bela
Até na última viage
No balanço duma rede
Sintido a brisa servage
Como se fosse um caminho
Que vai andando sozinho
Tendo os mato como image.

Os dotô das vadiage
Na Côrte, pulos jorná
Fica inventando cunversa
Pru num ter o que falá
Dando ao povo informação
Que as terra cá do sertão
Num é mais que um hospitá.

Tanta coisa a inventá
Que inté faz raiva na gente
Diz que os minino é magrinho
Que o povo é tudo doente...
Que diabo é crislotomóge,
Diambeta, trumbeculoge?
Quanta palavra indecente!

Um dia eu fiquei doente
Quage morri de uma dô
O meu cumpadre Mironga
Mandou chamá um dotô
E dende a cabeça inté
O dedo mindim do pé
O sujeito me aparpou.

Só dispois ele falou
Que eu tava muito im pirigo
Que eu tinha uma hôpantite
Aqui, na boca do figo,
E que num tinha mais jeito
Pruque já tava dos peito
Inté no pé de imbigo.

Aí eu pensei comigo:
Num acredito em dotô.
Ele num disse mais nada
Dispois que me arreceitou,
Se assentou num cantinho
E num papel inteirinho
Com a pena iscarafunchô.

Quando ele me entregou
Daquela casa eu saí
Fui no Chico Pé de Chumbo
Uma mandureba bebí
Com azeite e áio dento
E dende aquele momento
Nenhuma dô mais sentí.

Um dia eu fui assistir
Uma apresentação
Pru via do Desidéro
Me dar uma informação
Que no triato os atô
Ia falá dos amô
Das terra do meu sertão.

Fui no triato, apois não,
Que sastifação senti
Vendo os atô falá bem
Das terra donde eu nascí
Até dizerem besteira,
Vejam voces a porqueira
Dessa xêta que eu uvi,

Um cara de bacuri
Foi dizê uma poesia
Chamando de soveni
A sodade que sentia
Com uma musga sertaneja
Diferente das peleja
Que aqui nós sempre uvia.

Foi me dando uma agonia
Aqui no meu buliçoso
Aí eu gritei: - Canaia,
Deixe de ser mentiroso
Que esse tar de soveni
Num é coisa do Brasí,
Deixe de ser presunçoso!

Num teve um corajoso
Que me enfrentasse ali,
Vendo a besteira que eu fiz
Mas desculpa eu não pedí
Com raiva e desiludido.
Pois foi tudo acontecido
Do jeito que eu conto aqui.

O cara de bacuri
Num sabe poesia não
E as poesia dos doutô
Tá cheia de palavrão.
Eles que não sabe nada
É uma coisa atrapaiada,
Uma grande atrapaiação

Os verso aqui do sertão
É que nem um beija-frô
Com as penuge ainda quente
Cantando pro seu amô
Que aqui se ama de fato.
Mas porém, vamo ao triato
Que o caso ainda não findô.

Quando o triato acabou
Um graças a Deus eu dei
De riba do cambarote
No chão entonce pulei
Fiz com a mão um desaforo
Butei meu chapéu de couro
E dali me arritirei.

No camim eu encontrei
Um broco de carnavá
As muié tinha na cabeça
Um chapéu, como um jacá
No corpo, de pena um móio
Que só se vendo cum os óio
É pussive acreditar.

Aquelas moda de lá
É uma farta de respeito
Tinha uma moça atrepada
Cum uns pano mostrando os peito
Achei isso um caso séro.
E me diche o Desidéro
Que era a filha do prefeito.

Eu não entendi dereito
Aquelas coisa que eu vi.
De lá de riba atrepada
Ela oiô pra eu ali
Sem fazer nenhum segredo
Pichou um beijo cum os dedo
E dispois danou-se a rir.

Cumpade, as coisa que eu vi
Nesse tar de carnavá
Mermo eu sendo seu cumpade
Me envergonho de contar
É mermo um dia de juizo,
E eu achei que era preciso
Dali me arritirá.

Dispois eu fui visitá
Uma tá de cademia
Cheia de iscrevedor,
De homi que faz poesia
E os poeta de lá
Chamam dotô imortá,
Veja só que arrilia!

Dizê que quem faz poesia
Num morre é uma asneira,
Se isso fosse verdade
Aqui na nossa ribeira
Tava era cheia de gente
De cantadô de repente
Imortá na capoeira.

Dispois eu fiz a besteira
De ir ver uns monumento
Uns povo chamado estauta
Que passa o dia no relento
Sem poder nem se mexê
Trepado num sei em que
Levando sol, chuva e vento.

Lá no largo dum convento
Tinha um sinhô muito séro
Chamado Zé Bonifáço
Homi de muito critéro
Foi tutor e professor
Do segundo imperador,
Assim disse o Desidéro.

Inda fui num cemitéro
E outras coisa mais vi
Mas de tanto batê perna
De repente adoeci
Dispois duma chumbregueira,
Acho até que fiz besteira,
Dessa vez quaje morri.

Quando doente eu caí
Mandaro vim um dotô
Que era muito famoso.
O sujeito me aparpou
E diche pra Desidéro
Que o caso era muito séro,
Mas pra eu nada falou.

Apenas me preguntou
Se eu era pai e famía
Que eu tinha de viajá
Dentro de dois ou tres dia
Que eu tinha uma fissura,
Um má que não tinha cura
Chamado «lesão cardía».

Oxente, no outro dia
Mal o dia amanheci
Abracei seu Desidéro
E lá do Rio parti
Pra matá minha saudade
E morrê mais a vontade
Cá nos mato onde eu nasci.

Agora eu estou aqui
Com voces tudo: a comade
Minha véia Bastiana
Minha afiada, o cumpade
E a famía. No sertão
Pra morrê do coração
Se morre mais a vontade.

Os dotô lá da cidade
Sabe onde tem os nariz
A tá de lesão cardía
Foi o dotô Raio X
Que viu no meu coração
Mas essa máquina, patrão,
Nem sempre sabe o que diz.

Tou contente, tou feliz
Na minha comunidade
Tou curado, foi engano
Do dotô lá da cidade
A doença que eu sofria,
A tá de lesão cardía
Tinha outro nome: Sodade!
Irecê - BA, 26/12/2016

SIGNIFICADO DE ALGUMAS PALAVRAS
E EXPRESSÕES DESTE TEXTO:

Piancó = grande vale no interior da Paraiba, com várias cidades, inclusive a cidade de Piancó e o rio de mesmo nome. Esse vale
é também reduto de uma das maiores famílias latinas, a Família
Lacerda, a qual eu também pertenço.

Zuza = José Cavalcante de Lacerda ou Coronel Zuza Lacerda,
que combateu como policial e protegeu como coiteiro a vários
bandos de cangaceiros. Coronel Zuza foi Deputado Provinciano
e por desavenças políticas chegou a desmembrar suas terras do
resto do Brasil, proclamando sua própria República, a República
da Estrela, que durou cerca de quinze dias.

Guanabara = antigo nome do Rio de Janeiro.
Falar beradeiro = linguajar do interior.
Brocoió = matuto
Abróio = abrolhos. No texto significa, localidade.
Impuiô = enganou, levou na conversa.
Otromóve = automóvel.
Sarambelão = pilintra, malandro.
Arrufada = engomada
Sarará = falador, galhofeiro.
Mazombeira, esfabriçada = maltrapilha, esfarrapada.
Crislostomoge = esquistossomose
Diambeta = diabete
Trumbeculoge = tuberculose
Hôpantite = hepatite
Escarafunchou = escreveu
Mandureba = cachaça
Aio = alho
Xêta  = piada
Cambarote = arquibancada
Jacá = espécie de balaio
Pichou = acenou com um beijo
Estauta = estátua
Bacuri = porco novo, bacurim, leitão
Chumbregueira = porre, bebedeira
Fissura = lesão, ferida
Lesão cardía = lesão cardíaca.

Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 15/02/2017
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