José Medeiros de Lacerda

Leia poesia - A poesia é o remédio da alma

Textos

ARUANDA - NA FUNDAÇÃO DO TALHADO
Este trabalho foi elaborado para ser apresentado pelo GECAN - Grupo de Cultura e Artes Cênicas Professora Maria Alian Nóbrega,que tem como coordenador o próprio autor do livreto, no dia 07/10/2003, no Seminário de Cultura Afro-Brasileira, enfocando a história e fundação  do Quilombo do Talhado na Serra da Borborema, Município de Santa Luzia - Paraiba.
Obs. Todos os declamadores são membros do GECAN,
nascidos ou descendentes do Quilombo do Talhado.

FALA UMA RAINHA AFRICANA
ESCRAVIZADA NO BRASIL

O meu nome é AQUALTUME!
Eu fui nascida em Angola,
Uma terra de além-mar,
Vivia em meu paraíso
Com o povo a me consagrar,
Mas o branco interesseiro,
Na cobiça por dinheiro
Me trouxe de lá prá cá.

No porão com água do mar
De uma embarcação sem nome,
Jogaram minha família
Enfraquecidos de fome.
Por cama, lama e podrura,
Por alimento amargura,
Pra servir a brancos homens.

Os meus filhos GANAZONE,
GANGA ZUMBA e minhas filhas,
Por defender seus parentes
Dormiam presos nas quilhas.
Até fugirem pros matos
Se aquilombar em planaltos
Que haviam nas redondilhas.

FALA UM PRÍNCIPE AFRICANO ESCRAVIZADO
O meu nome é GANGA ZUMBA,
Um príncipe na escravidão.
Fugi pra o mato trazendo
Uma grande multidão,
Sem poder cruzar os mares
Me aquilombei em Palmares,
Formando uma nova Nação.

Lutando contra a opressão
O meu povo defendi,
Só dei trégua aos opressores
Para a minha irmã parir.
Lutando com a própria morte
Meu sobrinho nasceu forte
E foi chamado ZUMBI.

FALA UM REI NEGRO AQUILOMBADO
Eu sou ZUMBI DOS PALMARES!
Já nasci predestinado
A vingar Tio Ganga Zumba
Que morreu envenenado.
Tentando um tratado novo
Para libertar seu povo
Foi por um atraiçoado.

Cem anos tinha durado
Nossa querida Nação
Até o branco invadir-nos
E dizimar nosso chão.
Mas não nos desanimou
E a luta continuou
Até a Abolição.

FALA UM ESCRAVO FUJÃO:
O meu nome é JOSÉ BENTO.
Sei da história de Palmares.
Mas fugi de outras terras
De torturas similares,
Com tanta peia no lombo
Fugi, fundei meu quilombo
Com os meus familiares.

Com ferro nos calcanhares
Empurrei pedra em moenda
Junto com meus descendentes,
Padecendo em sujas tendas;
Com Zumbi Rei destronado
O negro fica assustado
Com medo de reprimendas.

Fugi de uma fazenda
No Estado do Piauí
Com minha mãe, meu irmão
E o branco a nos perseguir.
Foi uma longa caminhada,
Muitos meses de jornada
Pra chegar no Sabugi.

Antes de chegar aqui
Foi uma longa agonia,
Seguindo as sombras da noite
E a camuflagem do dia
Mas nunca desanimava:
Às vezes o medo chegava
Mas a coragem vencia.

A fome nos sucumbia,
O cansaço e a saudade
Mas a caça saciava
A nossa necessidade.
Se entregar ao capitão
Era tortura e prisão;
O mato era a liberdade.

Passando por uma herdade
Que não tinha escravidão
Uma galega bonita
Se encantou com meu irmão;
Conosco se acompanhou
E a coisa se complicou:
Foi dupla a perseguição.

Brasil em revolução
Foi favorável pra gente:
A Guerra do Paraguai,
A luta do Inconfidente,
Com a crise declarada
Desistiram da caçada.
E nós seguimos em frente.

E chegamos, finalmente,
Nesta terra de ninguém.
Pitombeira é um quilombo
Que muitos negros já tem.
Mas quilombo em tabuleiro
É isca pra fazendeiro.
Negro não se sente bem.

Avistamos mais além
O azul da serrania,
Continuamos em frente
Passando em Santa Luzia,
Da serra chegamos perto.
Mas pra achar o lugar certo
Foi preciso mais um dia.

Terminada essa agonia
Tratamos de descansar.
Construimos dois abrigos
Pois madeira havia lá.
Foi a nossa redenção:
Casei galega e irmão
Com a bênção de Oxalá.

Começamos a tratar
A terra pra plantação,
No povoado encontramos
Alguém que nos deu a mão
E plantamos com orgulho
Milho, feijão com gorgulho
E uma quarta de algodão.

Traidos pelo verão
Nada podemos colher,
Mãe, que era boa “loiceira”,
Com a galega a aprender
E eu na arte da madeira
Fazia e vendia na feira
Pra poder sobreviver.

De tanto a serra descer
Fui ficando “escambimbado”,
Fazendo porta e janela,
Mamãe no barro amassado.
Para identificação
Batizei a região
Como SERRA DO TALHADO.

Vinte anos são passados
Desde que aqui cheguei.
Nasce a primeira sobrinha,
Minha família aumentei.
Uma linda mulatinha
Que foi ficando mocinha
E com ela me casei.

No Brasil, O Senhor Rei,
Viaja pra Portugal
Deixa a Princesa Isabel
No Palácio Imperial.
Ela abre o coração
E acaba com a escravidão,
Numa alforria total.

Com o negro livre afinal
Se espalha pela Nação
Procurando um lugar certo
Prá poder ganhar o pão
E foi assim que o Talhado
Ficou sendo um povoado
Depois da Abolição.

E foram marcando chão
Pelo matagal fechado
Aumentando aquele império
Que por mim fora criado.
Logo em três se multiplica:
Riacho Grande, Oiticica,
E Olho D’água do Talhado.

Mas todos aqui chegados
Me guardavam serventia
Acatavam meus desejos
E assim todos vivam
No nosso canto sagrado,
De todo mundo afastado,
Mas em perfeita harmonia.

FALA UM NETO DE ZÉ BENTO
Meu nome, não interessa
Porque nunca interessou.
Nasci aqui no Talhado,
Na casa do meu avô.
Sou casado com uma prima,
Três meninos e uma menina
A gente já fabricou.

Desde que aqui chegou
Nesse mundo abandonado,
Meu avô sofreu pressão,
Por todos discriminado.
Se um da rua nos encontra
Grita logo e nos aponta:
É um negro do Talhado!

Nosso canto é isolado
De tudo no Sabugi,
Ninguém quer saber da gente,
Nem passa perto daqui,
E se pudessem fazia
Como fizeram algum dia
Com o Mestre, Rei Zumbi.

Mas nós ficamos aqui,
Plantando e caçando coelho,
Todos unidos, seguindo
Uma espécie de conselho
Na mais total liberdade.
Pra nossas necessidades
Nem precisa de “aparelho”.

No chão de barro vermelho
Se tira a matéria-prima
Pra mulher fazer panela,
Ensinando pra menina
E na noite de Quinta-feira
Sair pra vender na feira
Praquela gente granfina.

E quando a feira termina
Com o dinheiro arrecadado,
Se compra nosso alimento,
Insumos para o roçado
E vez por outra uma cabrinha,
Um porco, uma galinha
Pra se criar no talhado.

Quando o ano é atrapalhado,
Vem então a estiagem,
Não se colhe quase nada,
O negro perde a coragem,
Muitos, por necessidade,
Vão embora pra cidade,
Pra viver de vadiagem.

FALA AGORA UM BISNETO DE ZÉ BENTO
Eu moro aqui no Talhado
Mas vou embora pra rua,
Nosso quilombo acabou-se,
A serra tá quase nua,
Muita gente já desceu,
Outros, desapareceu,
Esta é a verdade crua.

Mãe ainda continua
Fazenda “loiça” com a mão
Mas ninguém compra mais nada.
E as “nega” da região
Tão cheias de vaidade.
Só quer viver na cidade
Procurando diversão.

Essa modernização
Só nos leva à desvantagem,
Não chove mais no roçado,
Pros bichos não tem pastagem,
Tanta casa abandonada
E a serra toda pelada
Por causa da estiagem.

Onde existia uma barragem
De potentosa parede
Hoje só resta os escombros
Com aranha tecendo rede
E um quadro triste, irrisório,
De abelhas no velório
Da flor que morreu de sede.

Já não se conhece o verde,
A cor que eu conheço é terra,
Algum cabrito ainda vivo
De tanta fome não berra,
Miséria e calamidade,
Essa é a realidade
Que o meu Talhado encerra.

Não queria ver na serra
Tanta casa abandonada,
Umas se desmoronando
E outras tantas fechadas,
Negros a serra descendo
E os que ficam, sofrendo,
Por não poder fazer nada.

PALAVRA FINAL DE UMA
PENTANETA DE ZÉ BENTO
Sou uma moça da cidade,
Não sei o que é passar fome,
Criada dentro das modas
Que a sociedade consome.
Mamãe é de um branco pardo
Mas papai é do Talhado,
Sanfoneiro de renome.
  
Meu pai tem Bento no nome,
Vindo do meu pentavô,
Eu não conheço o Talhado
Mas sei que de lá eu sou.
E nesta oportunidade
Apelo às autoridades
Que ora aqui se apresentou.

Nosso Talhado marcou
Sinônimo de abundância,
Hoje é reduto da fome,
Preconceito, ignorância,
Meu povo perde a vontade,
A religiosidade,
O estímulo, a esperança.

Entre adultos e crianças
Já foram mil e oitocentos,
Em oitenta só restavam
Mais ou menos setecentos,
Sem ter onde trabalhar
Hoje os que moram por lá
Talvez não chegue a duzentos.

O resto é isolamento,
Falência, mísero estado,
O desprezo, o abandono,
É bem mais acentuado,
Por isso, por caridade,
Eu peço às autoridades,
Resgatem nosso passado!

Falam tanto no Talhado,
Quilombo de tradição,
Material de estudo
Em quase toda Nação,
Dizem tudo por dizer
E nada fazem pra manter
O negro na região.

Com miséria e precisão,
Quem é que vai ficar lá?
Na cidade discriminam,
Nada fazem prá ajudar,
Vão exterminando aos poucos
Os decendentes “cabocos”
Do Nagô, do Iorubá.

O povo que mora lá
Não sabe o que é euforia,
Não sabe nem que existe
A palavra alforria
E na concepção deles,
TREZE DE MAIO pra eles
E apenas mais um dia.

Talhado fez travessia
Pra Rio, São Paulo e Brasília
Com talhadinos perdidos,
Longe de suas famílias.
Vendo a esperança perdida
Se aventuraram na ida,
Na volta perderam a trilha.

A ausência da família
Em sua mente desenhou
A memória das correntes
Marcadas pelo rancor
E o ódio acentuado
Daqueles que no passado
O seu povo escravizou.

Os herdeiros do Nagô,
Do Jéje, do Iorubá,
Estão agora mais tristes
Por ter que abandonar
A terra que os viu nascer,
E para sobreviver
Foram pra outro lugar.

Talhado ainda está lá
Do jeito que começou,
A mesma serra cinzenta
Quando o Sol esturricou,
Com a chuva o mato folhando
E o mesmo barro de quando
Meu pai Zé Bento chegou.

Se o inverno se firmou
Tem uivantes ventos frios
A noite escuta o murmúrio
Dos vales em assobios
E o som dos galhos soando
Como o negro soluçando

Nos tais negreiros navios.
Nosso quilombo saiu
Da serra por precisão,
Veio em busca de luz
Que nasce da escuridão,
Veio mitigar a pobreza,
Não foi atrás de riqueza
Nem de miscigenação.

Tem negro da região
Que não pertence ao talhado
E diz que somos um bando
De negros aciganados.
Um desse não tem valor,
Não olha pra sua cor
Nem lembra do seu passado.

Do Quilombo do Talhado
Só rastros da ocupação,
Ainda tem 50 casas,
Muitas em destruição
Outras sem porta e janelas,
Somente 23 delas
Ainda tem ocupação.

Cultos, ritos, religião,
Hoje o branco é quem comanda.
Negro esqueceu o Matungo,
O Caxixi de Uganda,
O Atabaque de Pau
Usado com Berimbau
Em saudação a Aruanda.

Tudo é o branco quem comanda
Aqui nesta região
Branco e índio em maioria
Fizeram a diluição,
Alteraram o pigmento
Da cor do negro Zé Bento,
Numa miscigenação.

Pela despretização
Quilombo agora é história
E por trás desse arco-íris
Se dilui nossa memória,
Talhado pra trás ficando
E a cidade levando
Nosso povo à compulsória.

Prometem tanta melhora
Pra nos deixar satisfeito
Mas não realizam nada,
Continua do mesmo jeito.
Vão prometendo, falando,
Mas continua faltando
Tudo que faltou ser feito.

Veremos se esse pleito
Que hoje aqui se realiza
Traz algo pra nossa gente
Que de melhorias precisa.
Se o projeto for feito
Turista sai satisfeito
E o turismo traz divisa.
Santa Luzia-PB, 05 de Setembro de 1983
SÉRIE ESCRAVIDÃO - VOLUME 5




Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 22/12/2009
Alterado em 17/11/2022
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