José Medeiros de Lacerda

Leia poesia - A poesia é o remédio da alma

Textos

UM CAÇADOR DE MOCÓ
Ouví CHICO SATURNINO
Um caçador de outrora,
Que contou-me com detalhes
Seus fracassos e vitórias,
Contando-me eu assitia
Uma aula de Geografia.
Passamos a sua estória:

“Sou filho de Saturnino
Constantino de Medeiros,
Dos velhos do tempo antigo
Que aqui foi um dos primeiros
A crer no catolicismo
E herdar o carrancismo
E a crença dos cangaceiros.

Com 95 anos
Eu nunca arredei o pé
Daqui de Santa Luzia
Nem prá ir em São José,
Meu transporte sempre foi
Carroça e carro de boi,
Lombo de burro e a pé.

No pé da Serra Redonda
Fiz uma caçada bacana
Eu matei oito de tiro
Foi a melhor da semana
Pra fechar a narração
Inda peguei um de mão
No tronco de um umburana.

Nesse tempo se caçava,
Trabalhava, vivia bem,
Papai fez grandes caçadas,
Eu fui caçador também.
Diz o ditado do povo
Que o pinto já sai do ovo
Com a pinta que o galo tem.

No ano de 19
Minha primeira caçada,
28 de Outubro
Tá na memória gravada,
Nesse tempo dava gosto
Do Sol nascer ao Sol posto
Andar na mata fechada.

Durante todo esse tempo
Eu sempre cacei mocó,
Nunca andei em comitiva
Pois podia ser pior,
Como dizia o ditado,
Prá tá mal acompanhado
Eu preferia andar só.

Foram 34  serras,
Eu tenho sempre na mente,
Me embrenhava em todas elas,
Norte, sul, leste e poente,
Hoje sei com grande mágoa,
Não há mais tanto olho dágua
Secativo ou permanente.

Papai sempre me mandava
O almoço eu ir buscar
No pé da Serra Redonda
E ficava a esperar
Pois isso nunca falhava,
Dois, três mocós eu matava
E trazia pro jantar.

Já cacei muito nos Gatos,
No Saco do Mulungu,
Na Serra de Antonio Berto,
Também no Capim Açu,
Lá no Tanque do Novilho,
Cacei  do Tanque do Milho
Até sair no Yayu.

Caçava mais no Domingo
Que é quando não se trabalha,
Pinga, Pedra da Boneca
Até o Saco da Palha,
Da  Pedreira a Retirada
Ali fiz grandes caçadas,
Se a memória não me falha.

Pilões, Talhado dos Louros,
Na Grota das Quixabeiras,
No Cabeço do Buraco,
Olho Dágua das Craibeiras
E na Serra da Cozinha,
Da Tubiba, Lagoinha,
Lagoa da Feiticeira.

Santa Maria dos Campina,
Raposa, Várzea Comprida,
Serra do olho Dágua Grande
Eu quase perdi a vida,
Em todo esse cafundó,
Eu matei muito mocó,
Minha caça preferida.

No Cabeço do Alferes
A Natureza criou,
Lá na Serra da viola
E Deus sempre conservou
Prá todas as criaturas,
Um olho dágua muito pura
Que até hoje não secou.

Cabaço, Serra dos Porcos
E olho Dágua da Lage,
João Mole, Curral de Pedra,
Eu guardo sempre a imagem,
Pro Saco da Lage Grande
Onde a pureza se expande,
Eu deixo minha mensagem.

Olho Dágua dos Alferes,
Pico Alto, Caiçara,
Lá na Malhada dos Louros
Onde hoje a caça é rara,
Na Carnaúba e Favelas,
Fiz muitas caçadas nelas,
Só não matei capivara.

Eu só caçava mocó
Porém havia exceção
Porque sempre aparecia
Um gato na região
E atravessou meu trilho
Eu apertava o gatilho
Prá ver o bicho no chão.

Um maracajá mirim
Foi o que eu matei primeiro,
Matei em Miguel Paulino
Um grande açú verdadeiro,
A carne toda eu comia,
Tirava o couro e vendia
Porque valia dinheiro.

Na Grota dos Pilõezinhos
Um bicho grande eu matei
Era uma bicha fêmea,
A maior que eu encontrei,
Foi um trabalho tremendo
Que até hoje eu não entendo
Como foi que escapei.

Foi isso em 42,
Eu ia com Pedro Benício,
Avistei o animal
Embaixo no precipício,
Desci como lagartixa,
Rapei o dedo na bicha
Que foi grande reboliço.

Escorreguei no serrote
E caí no cafundó,
Meti as costas na ponta
De um tronco de mororó,
Deu-me um talho tão danado
Que eu fiquei todo rasgado,
Desde a nuca ao mocotó.

Teve outro maracajá
Que desse eu quase esquecia,
Voltando agora a mocó,
Matava em grande quantia,
Da saída prá chegada
Nunca perdi uma caçada:
De quatro a seis eu trazia.

No pé da Serra Redonda
Fiz uma caçada bacana:
Eu matei oito de tiro,
Foi a melhor da semana.
Pra fechar a narração
Ainda peguei um de mão
No tronco de uma umburana.

No ano de Trinta e Três
Lá em Antonio Romualdo
Eu fui caçar um mocó
Que morava num talhado
Quando dou fé me emparelho
Com um grande gato vermelho
Do tamanho de um veado.

Distante quarenta braças
Do lugar onde eu ficara
Depressa rapei-lhe o dedo
Pegou no meio da cara
Caiu por cima do lombo
Foi feia a queda e o tombo
Ciscando numa coivara.

Corri, peguei pelo rabo
Ele todo ensanguentado
Mas pulou na minha cara
Saimos engalfinhados
Cai aqui, cai acolá,
Tentando me agarrar
E eu com ele agarrado.

Arranhou todo meu corpo
E eu com o rabo na mão,
Levantei com toda força,
Meti o bicho no chão
Que a cabeça espatifou,
Pondo fim ao terror
De uma grande região.

É que ele vinha acabando
Com todos os galinheiros
Desde Manoel Filomena
Té dentro nos tabuleiros
Muitos me pagar quiseram
Porque só assim puderam
Ver livres os seus terreiros.

Eu fui mais Chico Gerôncio
Prá fazer uma caçada
Lá na Serra do Cabaço
Um dia de madrugada,
Vi um casal de mocó
Que se existiu maior
Eu não vi nessas paradas.

Era uma gruta profunda,
Eu quase dependurado
Mas apertei o gatilho,
Caiu um prá cada lado,
Desse casal de mocó
Aproveitamos um só,
O outro foi desperdiçado.

O macho caiu na boca
De uma grande gruta que havia
Pois essa serra é famosa
Aqui em Santa Luzia
Pelas grutas existentes
Onde  índios antigamente
Faziam suas moradias.

Eu vi um bicho esquisito,
Preto da cor de carvão
No Serrote Santo Antonio,
O único na região.
E tinha um cabelo só,
O corpo era de mocó
Mas tinha a cara do Cão.

Foi isso em 43
Quando o inverno começou,
Mas ao contar pros amigos
Ninguém me acreditou,
Prá provar que era  verdade
Essa grande novidade
Levei outro caçador.

Eu fui mais Manoel Rendeiro,
Nós saimos muito cedo,
Chegando no canto certo
Fiz então uns arremedos
Mas para desgosto meu
O bicho não apareceu,
Por certo ficou com medo.

Voltemos de tardezinha,
Fiquei muito desgostoso,
Manoel Rendeiro, irritado,
Me chamou de pabuloso
E  só não brigou comigo
Porque era meu amigo,
Mas passei por mentiroso.

Quando o vi era pequeno,
preto de alumiar,
o tempo foi se passando
e eu sempre voltando lá
mas nunca me desengano
e assim passei quatro anos
perseguindo até matar.

No lugar que eu ficava
ainda posso ir lá mostrar,
nunca mais nasceu pastagem
de tanto sapatear.
ali eu me ajoelhava,
me acocorava, sentava,
pacientemente a esperar.

Muitas vezes encontrei
seu fucinho em minha mira
mas a distância era grande
demais para quem atira.
pensava: se for chumbado
desaparece baleado
e eu não desmancho a mentira.

Entrava e saía ano
e eu nunca desistia,
no ano 45
quase que eu conseguia,
cheguei no ponto marcado
e fiquei alí sentado,
desde o amanhecer do dia.

Mais tarde já vem saindo
bem no meio do cercado
do velho Anísio Marinho
saiu beirando o roçado
fareijando pra sentir
tal se sentisse que alí
houvesse algo de errado.

Mas aí não desistí:
fui me chegando, chegando,
deitado, de quatro pés
agaichado, me arrastando,
cheguei bem pertinho dele
aí pressentí que ele
já estava me fareijando.

Fiquei fazendo marmota
e ele todo eriçado,
acendi o meu cigarro
mas quando olhei para o lado
vi uma raposa choca
do tamanho de uma porca
soltando aquele rosnado.

O mocó sumiu no mato,
tratou logo de escapar,
dei um tiro na raposa,
vi o mocó passar,
aquilo era tentação,
até parece que o Cão
faz questão de atrapalhar.  

Regressei desanimado
por Sítio Passagem do Meio
na casa da minha sogra
e depois que almocei
arrumei a catrevagem
despedi da cunhadagem
e para casa voltei.

No ano 46
eu continuava lutando,
já tinha calo na bunda,
de tanto ficar sovando,
o canto até já fedia,
o bicho não aparecia
e eu, paciente, esperando.

Peguei um pouco de terra
e soltei devagarinho
me orientei pelo vento
para sair do caminho,
com pouco lá vem o bicho
no seu jeitinho a capricho
a procura do seu ninho.

Deixou pra trás o talhado,
entrou no faveleiral,
e eu na perseguição
do cobiçado animal,
mas ele foi mais matreiro,
acho que me viu primeiro
e sumiu no matagal.  

Junho de 47
foi que vencí essa briga.
era uma mocó fêmea
Com três crias na barriga,
pensei logo cá comigo,
vou mostrar pros meus amigos
e acabar essa intriga.

No meio do xique-xique
procurando proteção
do vento pra me ajudar
com uma terrinha na mão
mas veio do lado norte
um sopro de vento forte
traindo minha posição.

Escutei um reboliço
e vi sair do talhado
dois mocós de bom tamanho
e o mocó preto afamado,
um atrás, outro adiante
e ficaram bem distantes,
todos três emparelhados.

Parecia proteção,
o preto entre os outros dois,
sumiram atrás de uma pedra,
apareceram depois,
os dois chegaram mais perto,
com um tiro só era certo
eu comer aqueles dois.  

Mas eu só queria o outro.
E vi o preto chegar.
Um correu, entrou na furna
ao vê-lo se aproximar.
Dei-lhe um tiro tão danado
caiu um pra cada lado
que deu trabalho a encontrar.

Pulei dois metros de altura
me espatifei no chão,
caiu o couro do joelho
e a cabeça do dedão,
a canela estraçalhada
mas eu não sentia nada,
queria o mocó na mão.

Mas tive muito trabalho
depois que o bicho matei,
passaram-se algumas horas
até que o encontrei
dentro de um buraco escuro,
já estava ficando duro
quando dele me apossei.

Era um bicho diferente
de todos os animais,
todo bicho, além do ânus,
tem os órgãos genitais
mas esse bicho difícil
tinha um só orifício
para os serviços gerais.


Tinha a cabeça de gato,
não tinha unhas nas mãos,
as orelhas de quati,
fedia que só o cão,
era um bicho sem igual
pois não houve outro animal
como ele aqui no sertão.
Matei  às onze do dia
e levei pro Cobiçado
porque Juvenal Aprígio
e Agostinho Romualdo
diziam que era buchicho,
que eu só inventei o bicho
prá transitar nos roçados.

Era um bicho muito grande
maior do que uma ticaca,
o couro era duro e grosso
como o couro de uma vaca,
mandei curtir por Pitanga
prá fazer calço prá canga
e correia de alpercata.

Paguei dez tões prá curtir,
isso era preço de ouro,
mas quando estava exugando
ainda no cuaradouro
já foi criando valia,
Cícero Fumeiro queria
dar dois mil réis pelo couro.

Severino Graciano,
Num ato pretensioso,
Andou a cidade toda
Mostrando o bicho famoso
Prá acabar com a fofocagem
E apagar a imagem
Que eu tinha de mentiroso.

Foram essas minhas caçadas
Por toda essa região
No tempo que eu era moço
Com uma espingarda na mão,
Fazia e acontecia
E ninguém me proibia,
Pois caça havia de montão.

Mas o tempo foi passando,
A caça se escaçeando,
O matagal rareando,
A idade se adiantando
E pouco a pouco eu parei;
Das minhas grandes caçadas
Já não me resta mais nada,
Somente a marca estampada
Da saudade que guardei;
Hoje velho, definhando,
Velhos tempos relembrando,
A visão foi se apagando,
Foi faltando,  foifaltando,
Faltou  de tudo, ceguei!!!                                  
(Série Caçadores, Volume 2)
Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 16/04/2009
Alterado em 21/11/2022
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras