A SAGA DO CANGACEIRO SAPIRANGA
Morei um ano em Sumé
Terra berço da cultura Lá pude desenvolver A minha literatura Fiz amigos na poesia No rádio, na cantoria E até na magistratura. Desempenhei aventuras Como entrevistador Conhecí várias histórias Armado com um gravador Todo trabalho empenhado Tinha um amigo de lado Como colaborador. Marco Aurélio, professor, Um amigo verdadeiro Falou-me de um certo velho Que havia sido cangaceiro, Mais de cem anos já tinha E habitava uma casinha Em São Basto do Umbuzeiro. Como eu estava em Monteiro Com uma trupe teatral Aproveitei o ensejo Pra visitar o local Despedí-me e fui embora Trepidando estrada a fora Seguindo o Expresso Real. Uma estrada vicinal Com o carro a sacolejar Atravessei Zabelê Sem na viagem parar Tendo deus por companhia Uma hora de travessia Fui avistando o lugar. Não foi difícil encontrar A casa desse ancião Sendo a cidade pequena Como outras na região Parei o carro na frente Tava o velho no batente Com o cachimbo na mão. Veio em minha direção Todo alegre e prazenteiro Como se houvesse chegado Um antigo companheiro Quem não soubesse da história Não suspeitava que outrora Havia sido um cangaceiro. De pé no meio do terreiro Me convidou prá entrar E eu não me fiz de rogado Com ele a me acompanhar, Sentei num banco encravado Ele na rede sentado Desandou a conversar. Começou a perguntar Que motivo me trazia Lhe respondí, sou poeta E gosto de cantoria Venho de longe daqui Resido no cariri Mas sou de Santa Luzia. Me falaram certo dia De sua vida passada Queria que o senhor dissesse Se a história é infundada Ou prefere não falar? Como prá me encorajar Ele deu uma gargalhada. Depois de muita zuada Foi se tornando silente Como se fosse juntando Reminicências na mente Acendeu seu fumarento E depois de alguns momentos Recomeçou novamente: “Sei, meu rapaz, que essa gente É muito mexeriqueiro Mas eu não nego a verdade Um dia fui cangaceiro E se ainda fosse gente Fazia tudo novamente Nesse mundo interesseiro. Sou natural de Umbuzeiro, Não sou de São Sebastião Fui homem sem ser menino Devido a situação, Sofrí muito no passado Hoje sou aposentado, Tô bem de situação. Nesta nossa região Cometeu-se desatino Mas a lei naquele tempo Só protegia granfino, Pobre era desprezado Por isso era levado A cometer desatino. O meu nome é Severino Sapiranga, sim senhor Sou filho de Zé Faustino Um velho trabalhador Humilde, honrado e ordeiro Que era filho de um tropeiro, Flor dos Santos, meu avô. Cangaceiro já não sou, Não tem mais nesses caminhos Mas nunca fui de magote Andava sempre sozinho Minha história é atrapalhada Mas, seu moço, águas passadas Já não movem mais moinho. Quem, me botou no caminho Dos antigos cangaceiros Foi porque salvei a honra Da neta de um comboieiro, A minha irmã adorada Tinha sido desonrada Por filho de fazendeiro. Confiando no dinheiro Aquele tipo escabroso Robou de casa e abusou Daquele anjo formoso Depois atirou no poço Como se fosse, seu moço, Um cachorro, um cão leproso. Depois fugiu cauteloso Da Fazenda Mulungu E foi tentar se esconder Em São Miguel de Taipú, Descobri-lhe o paradeiro E fisguei-lhe o corpo inteiro Como quem fisga um tatu. Me embrenhei no guatambú Já temendo represália A justiça que devia Ter me dado uma medalha Em vez de me agradecer Foi me caçar prá prender Por ter matado um canalha. Me enfiei na maravalha Dezoito noite na brenha, A polícia me caçando E eu entocado na lenha, Até completar um mês Daí fiquei duma vez Na canga dura e ferrenha. Quando meu pai, que Deus tenha No Santo Reino da Glória Ao pé dum monte de lenha Me deixou e foi embora, Enquanto ele se finava A filha que tanto amava Me entregou naquela hora. E quando ao romper da aurora O velho foi carregado Numa rede estrada afora... Quando ele foi sepultado, Jurei naquela manhã Defender a minha irmã De qualquer cabra safado. Saí com ela abraçado Pro rancho que Deus nos deu Encontrei a minha mãe Mais macambuza que eu Prá dizer toda a verdade Numa terça-feira de tarde Aquela santa morreu. Só depois aconteceu Daquele desaforado Carregar a minha irmã Antes de eu ter lhe matado Dez anos preso eu vivi E quando solto me vi Tinha o cangaço acabado.” Eu lhe escutava calado E quando ele parou Perguntei-lhe, “E sua irmã?” - Há muito já se findou. - E depois de cangaceiro, O senhor ficou solteiro Ou um dia se casou? Ele a cabeça baixou, Falou quase como prece: “De tanto e tanto sofrer O coração que padece Fica duro como um calo, Como as patas do cavalo No pedregulho endurece. “Vossa Inselença parece, Do jeito que preguntou, Querer saber se eu caí Nas armadilhas do amor, Me dê licença um pouquinho Deixa acender meu cachimbo Que eu vou contar pro senhor. O cangaço me obrigou Viver praqui, pracular, Certo dia atravessando A Serra Jabitacá, Eu vi em uma fazenda Uma moça fazendo renda Debaixo duma guaipá. Sentada num caçuá Essa caboca que eu vi, Com os pés sobre uma esteira De palha de buriti, Era formosa, era bela, E tinha a pele amarela Como a flor do murici. Do lado direito eu vi De tarde o sol se esconder, O milho novo crescia Com o feijão a estender E embaixo na ribanceira Muitos pés de macaxeira Já no ponto de colher. Quando vi aparecer Saindo lá do currá, O avô da moreninha Veio me cumprimentar Pediu que eu me apiasse E se pudesse esperasse Que ia servir o jantar. Foi meu cavalo amarrar Numa cuieira viçosa, Voltou prá onde eu estava Enquanto a moça, bondosa, Foi pela casa adentrando Com o cabelo avoando Tendo dum lado uma rosa. Aquela ceia gostosa Me deixou fortalecido Ali eu passei a noite Num converseiro comprido Sobre gado, compra e venda E a moça fazendo renda Num canto um tanto escondido. O avô tinha prometido Casar a neta querida Com o filho dum fazendeiro Por quem ele dava a vida Agora veja o senhor, A que me interessou Já era comprometida. Ela muito aborrecida Porque não tinha interesse Só ia casar por medo De que seu avô sofresse, Não gostava do rapaz E isso fez ainda mais Com que nós dois padecesse. Viruca, pois era esse O nome da tentação Já havia descoberto Que o amor, esse espião, Cá dentro e lá dentro dela Fazia renda e novela Nos nossos dois coração. No outro dia, patrão, Móde a conversa encurtar Quando o velho Tio Luca Foi meu cavalo arrear, Eu e ela, na saida, Demo um adeus de despedida Num grande abraço a chorar. A Serra Jabitacá Nunca mais atravessei Ela não gostava dele, Foi isso que assuntei; Pelo velho eu desisti, E foi assim que perdi A única muié que amei. E quando em casa cheguei Lá no fundo do sertão Escondida numas grotas Lá bem no fundo, patrão, Eu morava num ranchinho Mais maior um bocadinho Do que um ovo de cancão. Mas para meu coração De riqueza tava cheia; Óia só, um pote d’água Um uru, uma candeia, Uma coitemba, uma cuia, Um tronco de tabebuia E um couro seco de oveia. Um cabresto e uma peia, Uma garrucha, um quicé, Um Senhor crucificado, A esteira de catolé... Prá o senhor que me assiste, Eu lamento, como é triste Uma casa sem mulher! Veja as coisa como é: Já três mês era passado Na porta do meu ranchinho Uma tarde eu tava sentado Esperando anoitecer Vi um vulto aparecer Bem longe no descampado. Com a garrucha de lado Logo eu me prevenia E o vulto vinha vindo De repente ele sumia Numa volta do caminho Mas logo num instantezinho Outra vez aparecia. É uma mulher, dizia... Soltei um grito da boca Meus olhos não me enganava Era Viruca, a caboca, Sim, patrão, era Viruca, A neta do Tio Luca, Que corria feito louca. Me disse com a voz rouca Que tinha vindo fugida Prá não se casar com o moço Que havia sido prometida, Fez ao velho um desacato E se embrenhou pelo mato Como uma pomba perdida. Tava no mato escondida Pois não queria casar, Dormindo dentro das tocas Até um dia me encontrar Tinha jurado consigo: Se não casasse comigo Solteira ia ficar. Eu disse, tu vai matar Teu avô de padecer, Ela logo respondeu Que antes queria morrer Desprezada como um cão Que vender seu coração Como o avô ia fazer. Ameaçava chover, A noite se aproximava, E ela chorando muito Dizia que me amava, Que não casando comigo Prá viver naquele abrigo Com outro não se casava. Chorava... Como chorava... De vez em quando dizia Enxugando seus olhinhos Que uma coisa só sentia Era deixar o avô Que talvez com tanta dor De desgosto morreria. Ali eu também dizia Que lhe tinha muito amor Mas não ia magoar Nem trair tão bom senhor Que um dia, prazenteiro, Esse pobre cangaceiro Em seu rancho agasalhou. De repente começou O estrondo, a trovoada, Uma jibóia de fogo Passou numa disparada A chuva braba caía E enquanto escurecia Ela chorava assustada. Eu não pude fazer nada Com medo de fraquejar Forrei o chão com o couro Chamei ela prá jantar Café fervido em chaleira Um pouco de macaxeira E um tantim de mungunzá. Se ajoelhou prá rezar Nos pés do crucificado Eu por trás fiquei oiando Temendo aquele pecado Meu corpo todo querendo E o coração defendendo Passei a noite acordado. Eu, que já tinha matado Um cabra aproveitador Não ia sujar minha honra Com a honra do meu amor, No outro dia cedinho Botei ela no caminho Fui devolver pro avô. Eu vou dizer pro senhor O que fui observando Avô com neta abraçado E como um doido chorando, Rompí de vorta na estrada Prá minha humilde morada No meu cavalo esquipando. Em casa fiquei pensando, Rezando no pé da cruz, Seu moço, sarvei minh’alma, Mas porém, por essa luz, O Isprito Santo e Maria Me perdoi a eresia Eu sofrí mais que Jesus!!! Série Cangaceiros, Volume I)
Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 15/04/2009
Alterado em 01/02/2011 Copyright © 2009. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |