A CRUZ DA MOÇA
Como poeta de banca Sempre tenho procurado Mostrar casos do Nordeste Ocorridos no passado Esquecidos no presente Prá o leitor ficar ciente E eu ficar realizado. Pra obter bom resultado Eu destaco com eloqüência Os segredos da poesia Demonstrando competência Na maneira de agir Procurando produzir Da poética toda essência. Descrevo com veemência Uma tragédia acontecida Há muitos anos atrás Nesta terra ressequida Que na seca mata gente E se chove causa enchente Com gente desprotegida Deus protege a nossa vida Da forma que bem quiser Mas às vezes cobra caro A nossa falta de fé Talvez para dissolver A formar do “ver pra crer” Do incrédulo Tomé. Na região de Sumé Que São Tomé se chamava No Cariri paraibano Uma família passava Por todos os sacrifícios, Desassossegos, suplícios Que a seca lhes obrigava. Setenta e sete chegava No século mil e oitocentos Com uma tão grande seca Registrada em documentos Que devassou o Sertão Acabando a criação Causando grandes tormentos. Na pobreza os passamentos Persegue-lhe a precisão O sol racha a lama seca Não há mais água no chão Só resta aos sobreviventes Reunir-se e pacientes Começar a migração Vem de outra região Não muito longe dali Pajeú pernambucano Que é vizinho ao Cariri A notícia de haver água Lavando a seca e a mágoa De quem pôde resistir. Deram então de sair Em busca dessa riqueza Rios Una e Pajeú Por obra da Natureza Um com cacimba fluía O outro ainda resistia Tendo água em correnteza Coragem, muita fraqueza E predeterminação Sem nada prá carregar Nessa peregrinação Se bateram em retirada Pelas veredas e estradas Do Cariri e Sertão. Uma ou outra criação Que ainda resistia Serviam de alimento Durante essa travessia Uns, farinha e rapadura Outros somente amargura Temperava essa agonia A família de Maria Moça bonita e ordeira Que residiam num sítio Da região caririzeira Com os filhos desprotegidos Temiam dos seus queridos Ver a hora derradeira. Ali naquela ribeira Onde a família morava Nem água nem alimento Para ninguém mais restava Perdendo a fé e a esperança Prá fazer a tal mudança Já todos se preparavam. Dois cavalos só restavam, Animais de montaria Também com sede e famintos Eram o que eles possuíam No céu a lua prateada Numa fria madrugada Empreenderam a travessia. Num cavalo ia Maria Levando seu irmãozinho No outro com outra criança Ia a mãe devagarinho O pai com mais um irmão Enfrentando o pó do chão Queimavam os pés no caminho. Nos outros sítios vizinhos Já ninguém mais existia Somente casas fechadas Cheias de monotonia E currais abandonados Seus donos tinham migrado Seguindo a mesma agonia. No fim do primeiro dia Sem poder suportar mais De fome, sede e fadiga Morre um dos animais Só restando o de Maria Também já sem energia Tremendo nos carracais. Pesadelos infernais Toda a noite os dominara Ali mesmo onde dormiram Ladeando uma coivara Bem na beira do caminho No outro dia cedinho A viagem continuara Maria se preparara Para seguir caminhando Sua mãe sem o cavalo também seguiria andando E a meninada iria No dorso da montaria Que seguia tropeçando. Quando o sol foi esquentando Queimando a sola dos pés A criançada chorosa Devido a tanto revés O suor lavando a cara Da miséria sanguinária Daqueles pobres fiéis. Suportando esse revés Também o mato apitava No alto da serrania Que a estrada ladeava Era o aviso da cigarra Que ali naquela piçarra Nem lagartixa se achava. Maria desanimava Vendo a família sofrer Parou sua caravana E então resolve descer Um regato, um seco leito Tentando de qualquer jeito Encontrar o que comer Veio a se comprometer Que depois os seguiria Eles iam no caminho Ela a serra subiria Se não encontrasse nada Se encontrava na estrada Com eles no fim do dia. E foi assim que Maria Da família se perdeu Embrenhou-se na caatinga Pelo riacho desceu Deixando a serra prá trás Só ossada de animais Que pela seca morreu. Nesse dia não comeu Dormiu na areia fria No outro dia cedinho Recomeça a travessia Cheia de mágoa e desgosto Tentava lamber do rosto O suor que lhe escorria Viva alma ali não via Sozinha em sua aflição Cada vez mais se afastava Perdida no socavão Quase não mais caminhava As forças lhe abandonava Total desidratação. Mais um dia de aflição Outra noite de tormento O corpo todo tremia De frio, mesmo sem vento Suor não mais transpirava Rasgando a roupa tentava Toma-la por alimento. Já caída em passamento Dali não mais levantou-se Mastigando um lenço sujo Logo a boca retesou-se Outra noite e outro dia Entra prá história Maria E sua vida findou-se Melhor que a história fosse De outra forma contada Sabemos que nossa vida Nesta terra é limitada Se somos todos iguais Pra que uns sofrer demais E outros não sofrer nada? Aquela desventurada Que rezou tanto na vida Com fé em Nossa Senhora Pela fome foi vencida Sempre conviveu com os seus Lembrando o nome de Deus E foi por Ele esquecida. Na paisagem ressequida Seu corpo ficou secando Sua família distante Pela filhinha esperando Passaram um dia acampados Já quase desenganados Continuaram viajando. E foram se aproximando Das planícies pajeús Deixando atrás a caatinga Da Serra dos Sucurus Já mato verde avistava E ao longe já se escutava O canto dos inhambús Em campos cheios de luz Sentiram felicidade Porém lembrando da filha Todos sentindo saudade Sem desconfiar por certo Que ela fora a céu aberto Vítima da fatalidade Duas semanas mais tarde Urubus denunciaram A matéria decomposta Que a eles alimentaram Foi assim que caçadores E outros agricultores O corpo morto encontraram Ali mesmo a enterraram Junto a grandes alcantis Ficando essa nódoa triste No Riacho dos Cariris Que tantas cheias botou E na seca testemunhou Esse cenário infeliz. Deus, o Supremo Juiz Que só justiça produz Não puniu uma inocente Apenas mostrou-lhe a luz Lhe dando o caminho certo Prá se lhe livrar do deserto Da Serra dos Sucurús Marcaram com uma cruz O lugar que ela morreu E onde foi sepultada Cumprindo o destino seu Dali pro reino da Glória Segundo os anais da história Que sabem mais do que eu No outro ano choveu Volta o verde novamente A água enche os riachos Deixando o povo contente Maria foi esquecida Só restando a cruz erguida Naquele meio ambiente Nunca mais um seu parente No Cariri retornou Se viveram, se morreram A ninguém mais importou Rotina virou constância Maria virou lembrança E a vida continuou Pouco tempo se passou Nas terras de São Tomé -O Santo do ver pra crer- Que depois virou Sumé Aonde toda criança Nasce e cresce com esperança E se envelhece com fé Se remar contra a maré É o destino da pobreza Ter fé nas coisas do mundo É dos pobres a grandeza Nesse torrão nordestino Crer nas obras do Divino Faz parte da Natureza Por aquela redondeza De cima a baixo corria A notícia de milagres Naquela cruz de Maria E de conversa em conversa Só se falava em promessas Que a moça resolvia Começou a romaria Numa peregrinação Para o Sítio Cruz da Moça Com novena e oração Pedidos se realizavam Curas se concretizavam E assim virou tradição. As terras da região Foram se valorizando Cidades foram nascendo Povoados se formando Novas secas ocorreram Porém nunca mais sofreram Como aquele ano nefando. O povo sempre adorando, Rezando, pedindo luz, A cidade do Amparo Que é a mais próxima da cruz É uma terra querida Por Maria protegida São Sebastião e Jesus. Jesus que a todos conduz São Sebastião o patrono Maria a mártir da seca Que pereceu no abandono A cruz é a tradição Fincada lá no grotão No riacho como um trono. Dormindo o eterno sono A moça ainda está lá Nossa vida continua Como o sistema deixar Uns com muito outros sem nada Pobre na vida regrada E o rico a desperdiçar. Pobre logo ao despertar Ainda na escuridão Tem que render homenagem Ao avarento patrão E vai pra luta sonhando Pedindo prece e rezando Ao Santo de devoção Na abastança ou precisão Se tem muito ou se não tem Para a morte não tem chance Se ela vem buscar alguém De quem precisa por certo Esteja distante ou perto Não discrimina ninguém. Se escrevi mal ou bem Se usei vocábulo raro Na poesia de cordel Qualquer assunto eu encaro. Em Sumé dos Sucurús Pedi licença a Jesus Para falar sobre a Cruz DE MARIA DO AMPARO. Série Coisas do Brasil Vol. V Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 30/07/2008
Alterado em 06/08/2008 Copyright © 2008. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |